Uma história que se repete de pai para filho, contada a partir da portuguesa Póvoa de Lanhoso, celebra o teatro e a memória de um dos maiores atores brasileiros: Paulo Gracindo. VEJA O VÍDEO E LEIA A REPORTAGEM DA VISÃO
Com mais de 50 anos de carreira, tornou-se um rosto bem conhecido dos portugueses, ao participar em telenovelas como O Casarão, Dona Beija ou O Bem Amado, esta última tendo o pai, Paulo Gracindo, como protagonista. É ele o Invisível, a grande referência da peça Canastrões, concebida para assinalar o centenário do seu nascimento e, ao mesmo tempo, falar sobre o ofício de ator. Em palco, estarão Gracindo Júnior e os filhos Gabriel e Pedro, representando o Enviado, o Acontecido e o Inevitável. Nos bastidores, encarregada da produção, ficará Daniela, a filha mais velha, 36 anos, também atriz. A residência artística no Centro de Criatividade da Póvoa de Lanhoso (CCPL), de que Moncho é o diretor, foi o momento ideal, ocasião de luxo, para esta trupe reencontrar o ofício, esquecer os vícios da televisão - à qual dedicam grande parte do tempo - e abraçar a sua missão. "Estar aqui é uma conquista", confessa Gabriel, de 34 anos. "Hoje em dia, ser ator no Brasil é ser bonito, ter uns dentes bons, assimetria facial. Então, nós dizemos: vem para cima do palco, é aqui que a gente resolve! Este espetáculo traz isso, o desafio."
Sair do Rio de Janeiro e mergulhar profundamente no trabalho, de manhã à noite, era fundamental. "O criador precisa de fugir desse mundo de corre-corre, do stresse, onde produz algo de consumo imediato, como se fosse uma fábrica. É necessário um recolhimento para criar e refletir sobre a sua arte", considera Moncho. Apesar da dificuldade de deixar uma vida para trás durante três meses - o tempo necessário para montar o espetáculo, com estreia marcada para dia 12 no Casino Estoril, e partir em digressão por Portugal -, todos encararam o convite como uma grande oportunidade. "É uma ausência longa, mas não tínhamos dúvidas de que queríamos vir. Desta forma, eu e os três filhos. Foi quase um Big Brother, morar e estar junto... há muito tempo que não fazíamos isso", conta Gracindo. Para Daniela, este plano "bateu como um grande presente da vida, que nunca mais aconteceria".
Refizeram planos, fecharam compromissos profissionais e fizeram as malas para uma terra de que nunca tinham ouvido falar. Desligar não foi fácil. "Estavam no bairro do Leblon, no meio do trânsito e, de repente, só têm um engarrafamento por dia, quando as cabras são recolhidas e invadem a estrada", diz Moncho. "Para quem vem do universo artístico do Rio, é um choque."
Celebrar o teatro
O contraste é esmagador na Casa de Requeixo, onde estão instalados, e cujas paredes de granito remontam ao séc. XVI. Uma vez por semana, têm uma aula de ioga nos jardins, com os passarinhos da pequena aldeia de Frades como banda sonora. Via Skype, já tinham espreitado o novo lar e preparado mentalmente a mudança. Foram também as novas tecnologias a lançar a ponte entre Portugal e o Brasil. Tudo começou com Bululu. As pesquisas à volta do teatro levaram a família Gracindo a esta história sobre dois comediantes, escrita por Moncho Rodriguez. "Tinha muito a ver com aquilo de que queríamos falar. Um questionamento muito filosófico e poético", conta Gracindo Júnior.
"Eu vivi no palco e representei na vida." O conceito de Canastrões revela-se no epitáfio de Paulo Gracindo, considerado um dos grandes atores brasileiros, fugido aos 18 anos de Alagoas e de um pai conservador - antigo prefeito de Maceió e professor de Latim -, para representar no Rio de Janeiro. Moncho Rodriguez explica a génese: "Decidimos construir um espetáculo que pudesse falar das contradições do ator, que sabe ter uma memória muito antiga, mas está no mundo atual onde a arte se transforma num produto de consumo, o mercado te condiciona, os valores estão todos subvertidos, e entras em conflito. Para que é que serve o teatro? A poesia? O sonho?"
Durante seis meses, trabalharam juntos na construção do texto, somando às reflexões sobre o teatro as vivências desta família de atores. Moncho pediu-lhes uma tarefa singular: escrever uma "confissão", sem cerimónias ou meias verdades, sobre a relação que mantinham e como se viam. "Essas confissões foram uma grande "sacada." Deram ao Moncho um poder muito grande para escrever e levaram o espetáculo para um lugar muito especial", diz Pedro. O dramaturgo afirma: "Senti-me preocupadamente privilegiado, por ser depositário de confissões tão bonitas e tão fortes. Quando o ator se expõe ao ponto de colocar a sua intimidade nas tuas mãos, para que a possas transformar, mostra o nível de disponibilidade para o risco."
Por detrás das suas rugas, Gracindo Júnior, o Enviado, descobriu e aceitou a figura de seu pai. Gabriel, o Acontecido, revelou toda a sua raça em palco. Pedro, o Inevitável, deixou de fugir de uma herança familiar que, inicialmente, via como uma cobrança. Enquanto decorrem os ensaios, "vão caindo mais umas fichas. Vemos como o Moncho é um bruxo, genial a captar as coisas", considera Gabriel. "A família Gracindo apresenta", fizeram questão de colocar antes do título da peça, algo típico do circo, onde os segredos do ofício passam de pai para filho. A profissão, afinal, sempre os aproximou. Para o encenador, "é como se estivéssemos a pensar numa família que já caminhou mais de cem anos, com as memórias do antepassado muito presentes. Tudo isso transforma Canastrões num trabalho muito autêntico. Não é um espetáculo para mostrar, mas para celebrar."
Aproximação ao simples
O sotaque, marcadamente nordestino - fortalecido em Conceição do Piancó, na Paraíba - esconde a sua origem. "Sou galego, se fosse espanhol talvez não tivesse este sotaque", explica Moncho Rodriguez, 60 anos. Fixou o seu território profissional e afetivo entre a Galiza, o Minho e o Nordeste Brasileiro, indo ao encontro da memória da cultura ibérica. Regiões que partilham o mesmo ritmo reflexivo acarinhado. De há cinco anos para cá, escolheu a Póvoa de Lanhoso como lugar de criação. "Gosto muito de estar no campo, no sossego, onde não me sinto longe do mundo. Às vezes, o mundo é que se sente longe da gente, mas isso não é um problema nosso."
Moncho tem um vasto currículo. Dirigiu companhias espanholas, portuguesas e brasileiras. Foi premiado dos dois lados do Atlântico. Encabeçou projetos de intercâmbio cultural e colaboração ibérica. "Quando tentei compreender o que era o teatro, parecia um peregrino dando voltas em torno de uma muralha gigantesca. A querer saber como galgá-la para ver o que tinha no interior. Dei muitas voltas. Até que, um dia, a muralha se desfez por si só". O encontro com o teatro popular foi decisivo. "Foi um processo de aproximação ao mais simples, que é, por vezes, tão grandioso. Conseguimos tocar tantas pessoas e encontramos uma coisa fantástica: criar para celebrar juntos. E aí não temos medo do 'vamos ter público ou não'. As pessoas do teatro choram muito que não têm espetadores. Mas será que elas descobriram o caminho para ir ao seu encontro?", questiona.
Na pequena vila, Rodriguez procurou a proximidade com os sonhos, a cultura e o imaginário da comunidade. Depois de alguns espetáculos com lotação esgotada, feitos pontualmente a convite da câmara municipal, ficou a vontade de ir mais longe. Segundo Fátima Moreira, vereadora da cultura, "sentia-se que as pessoas não queriam que as coisas acontecessem de forma desfasada". Foi então que surgiu o Centro de Criatividade, com o propósito de se constituir como um lugar privilegiado para a criação artística, montagem de espetáculos e residência de criadores e de pesquisadores do teatro contemporâneo. As instalações abandonadas de uma antiga universidade da área da saúde, às portas da vila, foram aproveitadas para instalar o centro. Espaço não falta. Na enorme nave central de um pavilhão, expõem-se os adereços e cenários de anteriores produções. Há salas para ensaios, gravações, guarda-roupa, oficinas e o mais que se queira imaginar, além de um auditório de 400 lugares. "Tivemos a ousadia de implementar o projeto, que também é diferenciador", afirma Fátima. E acrescenta: "Não imaginavam isto, pois não?"
A formação de públicos é uma prioridade. Estimulam a criatividade das crianças com jogos dramáticos e outras brincadeiras. Aproximam os jovens da arte com oficinas e reflexões sobre temáticas apelativas. Concebem espetáculos a partir do imaginário coletivo e da história, com o castelo de Lanhoso, muitas vezes, a servir de cenário. E, com a "melhor idade", como Moncho trata carinhosamente os idosos, fazem um trabalho de resgate das tradições, das cantigas, das lengalengas, das memórias. "Conseguimos um respeito muito grande, dentro da vila, por parte de todas as pessoas", conta o encenador.
Em 2010, avançaram com um projeto de descentralização de espetáculos e ações de formação. Estão também a tentar fixar uma rede informal de parcerias com onze municípios vizinhos, com quem possam partilhar produções culturais. Para Fátima Moreira, os próximos anos serão decisivos. "O desafio vai ser gerir recursos escassos. Quem só se preocupou com os equipamentos, mas não tem um trabalho desenvolvido junto da comunidade, vai ter dificuldades." Em relação ao público, não têm razões de queixa. "As pessoas estão disponíveis para participar sempre que a tua proposta seja honesta. E que seja algo novo!", defende Moncho. Hoje, a população consegue ver a sua aldeia como um universo diferente.
"Isto não é um projeto alternativo, ecológico, nem verde, nem amarelo", diz o diretor artístico. "É um processo de criação e de pesquisa verdadeiro, onde todos os dias acordamos para exercer o nosso ofício, como um operário qualquer. De repente, a palavra criatividade virou moda. Nós, desde há 5 anos que falamos na necessidade das pessoas serem mais criativas e utilizarem os seus recursos para reinventarem a vida. Então, sentimos que a vila está na vanguarda e isso tem uma piada enorme."
Canastro das maravilhas
Com humildade e dedicação, a família Gracindo entrou, aos poucos, no quotidiano da Póvoa de Lanhoso. "Os atores famosos ou são extremamente antipáticos ou estupidamente simpáticos. Neste caso, tivemos muita sorte", afirma Luís, o proprietário da Casa de Requeixo, habituado a acolher caras conhecidas. Levaram o teatro às praças públicas - "olha, foi bom, até faturei umas moedas!", brinca Gracindo Júnior -, participaram em tertúlias, integraram outras atividades do CCPL, desde a realização de inquéritos à população à conceção da música do espetáculo (feita por Pedro, um autodidata dos sete instrumentos, à vontade tanto no acordeão como no clarinete). Ao mesmo tempo, descobriram novas linguagens, como a das máscaras, com a qual nunca tinham trabalhado. O canastro que os acompanha, nesta peça e na vida, está cada mais pesado, carregado de figurinos, sonhos e fantasias. A simplicidade e os segredos da construção das personagens, esses, pairam por perto, como uma paisagem etérea que flutua no ar.
16-04-2012 - Visão
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